domingo, 8 de abril de 2018

Era um vez um menino

Era uma vez um menino, baptizaram-no António. Foi um daqueles nascidos com poucos direitos práticos de alterar o rumo do seu destino, Ricardo Reis chamar-lhe-ia, um deserdado da sorte.
Nos primeiros anos de vida sofreu na pele e nos sentimentos as ''maravilhas'' fascistas da realidade: duas irmãs mortas por falta de assistência médica devido à pobreza da família, pai a ter que ir procurar mudar de vida além fronteiras, clandestino a salto como era  norma, muita solidão e calos desde cedo. Sempre teve dúvidas da existência de um Deus Bom, embora o tivesse procurado em algumas preces e orações.
Entre a rega do milho e do feijão, da escola primária, da apanha da lenha para a fogueira  e de muitos sonhos desejos, foi aprendendo a meditar, embalado por um desejo de um dia conseguir sair de si e daquela vida sem ser preciso ser a fugir. Entre várias dores, as mais fortes eram as provocadas pelas lágrimas da mãe, quando passavam noites escondidos das  alcoólicas inconsciências violentas do pai.
Aos dez anos matriculou-se no ciclo preparatório, aos doze no oitavo unificado, aos dezoito num curso superior da Universidade de Coimbra. A sua meditação mostrava-lhe agora a distância que ía da certeza dos calos, causados nas mãos pelas enxadas e pelos machados, até às certezas de papagaio da maior parte dos Professores Doutores que lhe iam passando no caminho. Foi um período de construção de ilusões e o seu correspondente tempo de avalanches de desilusões. A cabeça começou a dar sinais de não aguentar, salvavam-no de tempos a tempos uns trocos para a farmácia.
Quando, num dia de aniversário, alguém lhe disse que agora era maior e vacinado, sorriu triste, como que escondesse num silêncio cheio de ânsias, a certeza que nada mudava naquele momento. Já tomava conta da sua vida bem antes da legalidade temporária da idade. Uns anos antes, ao ler ''Os Esteiros'' logo se identificou com ''aqueles homens que nunca foram meninos''.
Naquele período Universitário, continuou a trabalhar para sobreviver: vendeu livros porta a porta, foi cozinheiro numa républika de estudantes e foi administrativo no Hospital da Universidade de Coimbra. O seu mundo continuava cercado por duas fronteiras principais; a falta constante de dinheiro e a estupidez maldosa envolvente.
Chegou a sentir-se anarquista, mas alguns profetas dessa forma política, cedo o fizeram sentir mais Libertário que outra coisa qualquer. Os comunistas tentaram várias vezes arrebanhá-lo, mas o medo da ditadura deste povo, sempre lhe disse para não ir na conversa. Socialistas, sociais democratas e democratas ditos cristãos, apenas considerava colectores de impostos e especialistas em chico espertismo corruptivo, que lhes ía enchendo os bolsos à conta do povo sempre à beira da desgraça. Entre os valores de uns e de outros, apenas discernia a baça luz da hipocrisia, facilmente perceptível nos discursos de promessas eleitorais e no seu não cumprimento consecutivo.
A sua luta mais pessoal era não enlouquecer, afogado na neuro-economia dos restos e das incertezas estomacais, preços que pagava por não alinhar em nenhum rebanho e por gritar ' Não me fodam o juízo' com mais convicção do que qualquer padre a dizer  missa.
Abandonou a Universidade tendo apenas aprendido que  aprender é querer aprender, procurando continuamente o conhecimento das coisas, desde a sujidade nas unhas, até ao pó das estrelas iniciais. Talvez tenha ainda aprendido que ensinar devia ser mais instruir do que educar, devia ser mais dar as ferramentas para uma vida melhor, do que replicar as bafientas sabedorias dos Catedráticos. Neste abandono da Universidade já era plenamente consciente de que a vida é feita de vontades e das suas práticas. Neste período trocou um suicídio por uma viagem até França, trocou um namoro com uma mulher linda e boa pessoa, por uma aventura, trocou um emprego por uma exposição itinerante do seu corpo imóvel. Iniciou nesse momento uma nova abordagem artística, que misturava revolta com quietude, que misturava força com uma procura mais profunda de si mesmo.
E por aí foi continuando, mostrou-se em muitos países, tentando que vissem na exposição da sua quietude, que não é preciso correr para conseguir chegar, que não é preciso explorar para possuir, que não é preciso humilhar para superiorizar, que não é preciso matar para não morrer, que não é preciso proibir para regular, que não é preciso enganar para negociar, que não é preciso estupidificar para governar, que não é preciso dividir para reinar. Aquele homem-estátua, acabado de nascer, apenas se mostrando na sua quietude, tinha a esperança que cada pessoa que parasse a olhá-lo, reparasse também na sua própria quietude e nesse momento se interrogasse quem afinal era e o que andava mesmo a fazer na sua vida.
Era uma vez um menino que agora sou eu. Neste aqui e agora eterno a felicidade continua mais virtual do que real. Continuo a não fazer parte activa de qualquer maioria ou minoria. Aproximo-me vertiginosamente da ideia de que tudo está ligado e que existimos desde o principio de tudo e existiremos até ao fim de tudo. Em tempos idos cheguei a dizer que se algum dia me conseguisse alimentar de luz, mudaria de cor. Acrescento agora, que  no dia em que conseguir parar o pensamento, transmutarei de Ser.

hâToino de Lírio
Janeiro de 1999, Lisboa