terça-feira, 6 de maio de 2008

carta aberta a um indigente


Carta Aberta a um Indigente Ou Treinos para o fim da linha

Aleluia a Ti que resistes a todos os sócios de todas as sociedades e comanditas , Aleluia a Ti que te alimentas dos restos de todos os restos, Aleluia a Ti que consegues dormir aconchegado na tua ausência de esperança. Aleluia a Ti que não proclamas Aleluias a nada.
Muito possivelmente já não sabes ler mas mesmo assim eu escrevo-te na mesma, algum camarada de destino te lerá esta carta que pretende ser um hino à tua coragem e à tua força. Oiço muitos tecnocratas da solidariedade dizerem que estás perdido, que perdeste todas as forças etc, etc; Se tivessem lido Fernando Pessoa talvez tivessem mais cuidado com as palavras, pois até aos loucos tirava ele o chapéu por tudo terem perdido menos a razão. São esses mesmos tecnocratas que te convidam uma vez por ano (no Natal) para uma jantarada onde lavam as suas mãos de qualquer responsabilidade pelo teu estado; mas tu nunca apareces, conheces muito bem a sua hipocrisia. Não preciso de perguntar a ninguém para saber as quatorze mil e quinhentas razões ou a falta delas, que te despejaram no lado escuro das ruas, no lado feroz da vida, no vazio da civilização contemporânea. Tu podes não Te lembrar de mim mas eu já estive a teu lado, já fui acordado à coronhada por polícias ditos civilizados, a meio da noite, quando apenas dormíamos numa casa em ruínas. Já bebi contigo vinho ordinário daquele que até para cozinhar é mau, já partilhei contigo aquilo que também não tinha, já tomei contigo Valiums fora de prazo para o sono vir mais depressa. Mas eu não aguentei muito tempo, faltou-me a força para desistir completamente e Tu foste meu amigo, recordo-me bem: vai camarada, vai que tu és preciso do outro lado da linha! Disseste-me Tu quando eu arrumava os meus poucos trapos e te deixei de recordação o meu único chapéu, por acaso de Lord Inglês, que um outro amigo me tinha oferecido noutra maré de tempos e de sortes. Criei entretanto algumas pontes instáveis com a sociedade, embora não consiga sustento para ter as cotas em dia, fiz da minha luta o meu ganha pão, fui pai e fui-te encontrando de tempos a tempos, mas tu dizias-me um olá rapaz! E afastavas-te …até hoje é assim! Com esta carta não te venho pedir para que voltes a beber um copo comigo ou que apenas não te afastes, não te venho pedir nada, porque eu sei que nem nada tens para dar. Escrevo-te para te dizer que compreendo completamente a armadilha de que queres fugir, escrevo-te para te dizer que nunca mais te direi para pelo menos tirares o BI, escrevo-te para te lembrar que mesmo aqui no fio da navalha da dita vida um pouco mais normal não te esqueci nem te esquecerei e que admiro a energia que te faz resistir fora de qualquer jogo e sem fazer mal a ninguém. Escrevo-te para te dizer que ainda hoje prefiro a tua companhia à de qualquer filha da puta desses normaizinhos e bem comportados que nada mais fazem senão jogar á hipocrisia, ao engano e á exploração de outros homens entretanto piores do que tu embora no aconchego quente dum lar que os aprisiona. Já passei por ti a dormires na soleira dum pedestal duma estátua duma praça imperial e não te acordei, não quis quebrar o calor que recebias naquele momento e que tanta falta te faz. De mim nunca ouvirás nem sermões, nem conselhos para vires para este lado da vida, mas se um dia a tua vontade o quiser, o primeiro bem-vindo irmão! será o meu. Bem hajas! E que nos teus sonhos esqueças a dor do teu corpo e exista a tua verdadeira vida!
hãToino

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